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Artigos Segunda-feira, 13 de Janeiro de 2025, 09:40 - A | A

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Segunda-feira, 13 de Janeiro de 2025, 09h:40 - A | A

ELISMAR BEZERRA

Um puliça: a carnificação da lei

ELISMAR BEZERRA ARRUDA

No tempo da Ditadura Militar, no Sertão, policial tinha mais apelido que jumento: era a forma dos sem-poder se vingarem das suas perversidades e desaforos, praticados como quem sabe que o faz expressando uma ordem sem leis que o puna. Na frente dos puliça, ninguém ousava sequer usar a palavra Samango: era desonroso, odiado pela soldadama: “Os samango chegaro aí, num sei fazer o quê...” – dizia-se quando alguma patrulha andava por aqueles ermos.

Numa daquelas cidadezinhas interioranas, de onde os grandes centros urbanos não tinham notícias, nem tinha necessidade de saber – havia lá, a serviço, um policial típico daquele tempo: sem escolaridade, bruto e exibicionista. Lá, alguma face benfazeja do Estado jamais se mostrara: a Polícia era o ente estatal que o materializava mais claramente, e pelo comportamento e atitudes mais antipáticas – especialmente nas faces dos mais pobres...

A Polícia, por sua forma de ser e existir ali, promovia a afirmação de uma apartação tácita daquela sociedade – aliás, nem tão tácita assim, dada a sua materialização pela brutalidade policial: de um lado os comuns, os quase-nada, sempre sujeitos às ações desmedidas das polícias; e os cidadãos-com-bens, especialmente os fazendeiros que, mais que os comerciantes, tinham da Corporação a deferência, a quase obediência. Nunca vi ou soube de algum fazendeiro, no Araguaia daquele tempo, que tenha sido importunado pela polícia; agora padre, peão-do-trecho, líder comunitário, freira, sitiante, posseiro: esses, era abrir a boca: “e o pau cantava no lombo...”.

Havia ali, o Nego-Puliça. Sujeito com cara fechada, de nunca ninguém ter visto riso nela. Retinto. Cabeça raspada, sempre brilhando, sem cabelo nenhum. Alto, mas sem músculos de atleta. Para quem se atrevia olhar aquela cara, ficava na dúvida se ele expressava enfado ou preguiça; talvez, as duas coisas – com a segunda suplantando a primeira. Devia ter uns quase 40 anos de idade, com uns quinze anos de polícia militar; tempo que não lhe serviu para acrescentar um til em sua formação intelectual. Seu polimento, no modo de ser e se expressar, parecia ter sido lavrado à machadada, no escuro.

A fama que mais o incomodava, ainda que nunca ninguém lhe tinha jogado na cara, era a de ser “analfabeto de pai e mãe”: não lia nem escrevia nada; as pessoas, especialmente os peões-do-trecho, gostavam de dizer, quando ele passava: “Esse aí, só faz um “O”, quando se senta na praia, nu...”.

Tinha fama de durão, embora se dissesse na surdina, que, na verdade, era um “frouxo”; mas, ninguém nunca o viu sendo desafiado por qualquer. A farda escura, coturnos altos, e andando sempre como se marchasse, com as pernas abertas pros lados, flexionando-as além do normal, formavam um conjunto que lhe dava à estatura um aspecto superior ao que era. Completava o conjunto (“aquela marmota”, como se dizia), um cão – desses das raças grandes, parecido com o Capeto, o cão do Fantasma, aquele dos gibis – que trazia tão junto de si, na coleira, que parecia parte do próprio corpo...

Uma figura daquelas, naqueles sertões, tinha tantas histórias a seu respeito, quanto os apelidos degradantes, que lhe punham como vingança silenciosa e gaiata. As histórias envolvendo aquela criatura viraram folclore, e se multiplicavam cada vez que alguém contava uma, ganhando aquele mundo todo; penso que algumas delas eram do seu conhecimento, mas ele não passava recibo. A maioria dessas histórias eram engraçadas e nem um pouco honrosas – o pior, é que, “pelo conjunto da sua obra de policial” contra os simples, talvez ele merecesse...

Dizia-se que, certa vez, no lugar em que os ônibus chegavam e partiam para os diversos lugares da região, onde havia sempre algum reboliço de gente na madrugadinha, meio dia e à noitinha – deu-se um fato memorável. No verão, que é a época do ano em que não chove na Amazônia, depois de meses trabalhando duro nas empreitas para as quais tinham sido contratados, os peões vinham das fazendas para as cidadezinhas. Então, ali na rodoviária, a uma aglomeração se fazia maior e mais barulhenta: era gente com dinheiro no bolso, muita sede na garganta e cheios de disposição para as festas regadas à cachaça e alguma cerveja nos botecos e cabarés. Falavam alto, reencontrado conhecidos e até parentes; dado que cada um ia para o serviço que conseguia, em lugares e fazendas distintas, apartando-se um dos outros.

Era finalzinho do dia...

Os ônibus chegavam mais ou menos no mesmo horário, a depender da desgraceira que cada um encontrava na respectiva estada: de buracos e poeiras, no verão; porque na época das chuvas, era lama e atoleiros. Não demorou muito, e chegou aquela figura, que, só de olhar, já se sabia quem era: mesmo quem não o conhecia pessoalmente, sabia que era ele. Chegou pisando firme, cara levantada, a cabeça raspada brilhando, segurando a coleira do cachorro que, rente a si, parecia esperar a ordem para atacar quem o desacatasse: a algazarra foi diminuindo, até restar silêncio e olhares curiosos para a “carnificação da lei”; que fez trovejar a voz:

– Presta atenção! Quero ver os documentos de todo mundo! Já pega e fica com ele não mão, pr’eu ver!
Diz-se que a peãozada se entreolhou e, silentes, cada um começou a procurar nos bolsos das calças e malas os tais documentos. Ali tudo estava amarelado de poeira: mala, cabelos, cara, roupa, tudo! Os papéis que saíam dos bolsos e das malas tinham as marcas das andanças dos seus donos, de modo a parecerem mais antigos que os primeiros papiros: era metade de identidade, registro de nascimento com fita durex já ressecada, emendando as partes rasgadas, e outros papéis que lhe apresentavam como documento. Então, um dos peões, que nem se lembrava de quando vira sua identidade pela última vez, mostrou-lhe uma velha passagem de ônibus que tinha guardado na mala; ele a olhou rapidamente, disse um “Tá bom!”, e seguiu examinando os demais “documentos”.

Outro tirou e mostrou-lhe parte de uma bula de remédio: ele olhou bem, como se desconfiado, e continuou seu trabalho. Seguiu assim, olhando a “documentação” de todos, sob silêncio sepulcral, até chegar no último. O peão lhe mostrou dois “documentos”: uma velha receita médica, com a logomarca do hospital, que exibia num canto o retrato de um médico; e uma velha passagem de ônibus, de uma empresa cujo nome, era em homenagem um povo indígena e, portanto, tinha a imagem, o retrato caricato, de um indígena num canto. Diz-se que o Nego-Puliça olhou de relance a passagem, tomando a receita nas mãos para verificar melhor a sua autenticidade: do jeito que tomou, ficou a examiná-la, como se lesse; passados alguns intermináveis segundos, o peão, que sabia da sua fama de analfabeto, não se aguentou e lhe disse sério: – Dotô, o documento tá de cabeça pra baxo!

O policial o olhou com cara de enfado e reprovação, respondendo rispidamente: – Puliça lê de qualquer jeito, rapaz; vá-simbora! Respondeu dando-lhes as costas, marchando rumo à delegacia com seu cachorro à coleira; mas, antes, para seu deleite, ouviu um peão caçoar do repreendido: – Toma seu besta! É pra tu pará de ser inxirido, de achar qui sabe di tudo!

O Povo é insuperável, em suas belezas e feiuras; mas, todas em construção!

(*)  Dr. ELISMAR BEZERRA ARRUDA é professor.

Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br

 

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