Há historiadores que consideram a possibilidade de terem existido na Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá, desde meados do século XVIII, vendedores de água colhida no rio Cuiabá e transportada em carros puxados por bois: (...) não faltaria, porventura, quem aproveitasse algum carro de boi dos que transportavam as cargas, entre o porto e as lavras, pela estrada larga sem morros ou subidas, para conduzir água do rio, a pouco mais de meia légua de distância.
Mais de um século depois, o governo da já então província de Mato Grosso instituiu uma espécie de concessão governamental dos serviços de coleta e distribuição de água doce potável na cidade de Cuiabá, por meio de carroças. Hoje essa concessão na cidade de Cuiabá está sob a responsabilidade de uma empresa privada.
Naquela época, mais ou menos 1872, o governo concederia monopólio (...) ao empresário ou empresa que, em carroça com pipas ou em outros quaisquer veículos ou meios, apropriados, vender aos habitantes dos dois distritos da capital, durante a estação da seca e mesmo fora desta, suficiente água potável, tirado dos rios Cuiabá e Coxipó.
A concessão funcionaria em regime de exclusividade: “ninguém poderá mais vender água, quer conduzida em carroças, quer em pipas, barris, potes e outra qualquer vasilha”. Para maior controle, os condutores de água deveriam ter autorização e “trazer sempre qualquer sinal para que sejam reconhecidos”.
Mas a exclusividade poderia ser suspensa. E, além disso, “nenhum barril de água, com a capacidade de 40 litros”, poderia ser vendido “por mais de cem réis e da metade na estação chuvosa, e que a água exposta à venda sempre seja dos referidos rios”. A exclusividade na comercialização não impedia, porém, a coleta individual para consumo próprio, pois a lei “não priva um qualquer habitante” a “se abastecerem da água precisa”.
O aumento da população urbana no imediato pós-guerra do Paraguai, com o consequente crescimento da demanda por água doce potável, gerava nos períodos de estio a “penosa necessidade de prover-se d’água nos leitos dos rios Cuiabá e Coxipó, a meia e a uma légua do centro da cidade”. Esse provimento era feito por “aguadeiros” que vendiam águas colhidas em rios, certamente menos limpas que as das fontes, bicas, poços e chafarizes. Essa prática está presente hoje, conforme jornais locais, nas cidades de Várzea Grande e Chapada dos Guimarães, municípios próximos a Cuiabá, por meio de caminhões pipas, cuja procedência a população não sabe informar.
Em 1880 anúncio em jornal de Cuiabá mostrava a existência na cidade de atividade empresarial voltada para coleta, transporte e venda de água potável, com investimento de capital em carros, bois, arreios, vasilhames de maior capacidade: Muita atenção! Grande Pechincha! Olho, senhores carreiros: se vende dois carros de bois, sendo um para carga, e outro para água, com 10 juntas de bois, e com todos os pertences aos outros carros. Em 1881 existiam na cidade de Cuiabá pelo menos 10 carroças “de condução”, dentre as quais certamente algumas conduziam água potável. Hoje são os caminhões pipas e seus proprietários que fazem a venda da água nas cidades. Coitado do povo. Paga a conta para o órgão responsável e paga o empresário do caminhão pipa.
Em 1892, Ângelo Liceti, João Feliciano Pinto e João Ribeiro do Nascimento pagavam regularmente impostos para trabalhar com suas carroças no espaço urbano de Cuiabá.
Existem referências a pipas colocadas em carroças, que passavam pelas ruas da cidade vendendo o precioso líquido ao preço de CR$0,05 e CR 0,10 (cinco e dez centavos) a lata, na base do cruzeiro velho. Em 1882, ano em que o abastecimento do centro da cidade deveria já estar funcionando, jornal local publicava:
(...) mais uma vez a reclamação nossa, foram pela autoridade policial proibidos os banhos e lavagem de roupa na margem acima do rio, dos pontos onde os AGUADEIROS enchem suas pipas; é, porém, necessário que seja também proibido o despejo de imundícies na margem do rio acima dos mesmos pontos, como fazem, segundo nos informam, as faxinas do 2° Batalhão de Artilharia.
As atividades dos aguadeiros, com suas carroças e pipas, vendendo água colhida no rio Cuiabá, não foram portando simplesmente eliminadas com a “modernização” do encanamento de ferro de água doce potável acrescidas de penas e torneiras, iniciada em 1882. Hoje a prática continua e sacrifica a população.
As desigualdades da “modernização”, deixando excluídas a maior parte da população citadina favoreceu essa coexistência, entre o “velho” e a novidade. Visto no sentido inverso, a permanência desse “sistema” baseados em energia animal e humana, comprova a indiscutível exclusão de significativo número de consumidores urbanos, mantidos sem acesso à água encanada, domiciliar ou mesmo “pública”, não diferindo dos tempos atuais.
(...) Lá no poço da Lixeira. (...) Saudade de beber desta água, cristalina e sem cloro, ainda que custasse um tempo, das noites escuras de fila, dos barulhos das latas (...) Charretes e carros de mão. (...) as ruas foram traçadas e o poço entupido, além das nascentes que deram lugar a imensos prédios e grandes condomínios na capital mato-grossense.
Senhores vereadores, fiquem de olho nas nascentes de água que habitam as suas cidades. Protejam! Cuidem! Fiscalizem!
(*) NEILA BARRETO é jornalista, mestre em História e membro da AML e atual presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.
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