A moral pule o viver, mas pode matar! Ao tempo em que orienta certa liberdade, emoldurando ou estabelecendo as fronteiras solidárias do caminhar de todos sob determinados interesses, manieta, amordaça e enterra vivo, o espírito que busca abrir caminhos por onde o futuro novo possa vicejar. Porque, talvez, não seja a moral o problema, mas o interesse – notadamente o interesse egoístico: esse que faz o bilionário sorrir feliz com o seu conforto assentado sobre a miséria de pais e mães famélicos, com filhos deserdados de qualquer futuro livre, condenados a servir aos que os miserabilizam. O Nazareno, sabendo disso, já despido de todo o egoísmo, despiu-se também das vestes, e mostrou-se pleno de amor e simplicidades aos discípulos; então, para espanto deles, curvou-se até o chão e lavou-lhes os pés: afigurou assim, a ética e a moral necessárias...
A vida é complexa; mas, também não é, não: se trazida para o rés-do-chão das significâncias mais necessárias, rebuça-se de benquerenças – aí, plana-se de singelezas...
A construção antiga abrigava o clube da cidade, onde as pessoas iam para as comemorações mais importantes: formatura dos que concluíam a Educação Primária, um casamento da pouca gente de posses, a comemoração da vitória do novo prefeito; os eventos sociais mais importantes ocorriam ali, sob a vigilância conservadora dos que se diziam zelar pelo suposto modo certo de ser da sociedade. Na porta larga do clube, num dia de festa do aniversário de fundação do lugar, Rosalina foi impedida de entrar, porque Roduvaldo Açougueiro levantou suspeita de que ela não era mais moça-virgem; a coitadinha quedou-se em tristeza e vergonha imensas, remastigando no escuro do quarto aquela maledicência: nunca se dera a ninguém, sua mãe-viúva sabia e se entristeceu chorando junto. Choravam mais, não ter o poder para desdizer na cara do seboso, aquela perversidade...
Rosalina rezou fervorosa, chorando pra dentro de si, para a mãe não ouvir e se entristecer mais; pediu ajuda à Nossa Senhora, a São José, pra livrarem-na daquela dor. Um dia chegou carta da única tia, que seguiu morando na terra dos parentes maternos, quando a mãe veio acompanhando o pai, recém-casados: dizia à irmã de suas saudades, de lembranças e, por fim, sugeria convidando Rosalina para ir morar consigo e seguir os estudos. Mãe e filha gastaram dias e boca-de-noite considerando o que a tia lhes sugerira; enfim, aquiesceram. Passaram-se anos: de estudos, de coisas da cidade, de saudades e de envelhecimento da mãe; voltou mulher amadurecida, de fala polida, rosto bem tratado, roupa de bom-corte e exalando perfume caro: era engenheira formada, contratada da Companhia de Trens de Minas Gerais.
A vida é um doer de muitos desassossegos, mas nunca se prolonga num sem-fim de amarguras: há sempre uma doçura nos seus intervalos...
Andou na rua, vendo gente nova, desconhecida, visitou casa de antigos conhecidos, despertou comentários de admiração: “Gente essa é a Rosalina da Januária do finado Salomão...?” A mãe não cabia em si, de alegria e orgulho: “ah, Deus era bom: reservara-lhe a maior alegria para a sua velhice”; chorou de alegria! Roduvaldo Açougueiro era um velho corpo sem serventia, largado no fundo de uma preguiçosa. Dali viu Rosalina passar, admirou-se, perguntou quem era: disseram-lhe – ele, “alembrando-se” se afundou silente em suas insignificâncias.
Às palmas na calçada da casa, Dona Dica foi atender: quando viu Rosalina tão em si, chorou – era alegria, era tristeza! Abraçou-a, tomando-se toda de lembrança da filha Raimunda; eram amigas, das confidências mais íntimas, dum jeito que Dica tinha grande afeição por Rosalina. “–Pois é, Dona Dica, fiquei sabendo: Mamãe me disse numa carta...” disse-lhe Rosalina tomada de tristeza; fez-se silêncio de profundezas siderais, de se ouvir o pulsar das duas, e respirar demorado, doído, de saudade sem termo...
Funcionária da Prefeitura, Raimunda era cheia de simpatia e dedicação às coisas que fazia; que despertava inveja na sisudez e falatórios desonestos: falavam de caso dela com certa autoridade, que era casado; dizia-se que não era mais moça-virgem. Raimunda não se importava com aquilo, ou fingia bem; o certo é que seguia parecendo segura de si. Então, no fim do verão, quando parecia querer começar as primeiras chuvas, deu-se aquela tragédia: Dona Dica alarmou a vizinhança na boca-da-noite com gritos de desespero: correu todo mundo pra acudi-la – na cama, Raimunda jazia morta e, ao lado, um líquido branco escorrido do copo. Raimunda não teve força para a dor dos olhares e falares acusadores, impiedosos, dando-a por “indecências” e “sem-vergonhices”, quando suas entranhas se avolumassem mostrando a vida que gerava...
Decretou-se luto de três dias. Na porta da prefeitura, puseram uma faixa preta, em diagonal, indicando o luto; ali, na última manhã do luto oficial, viu-se engastado um envelope branco, desses com bordas marcadas por faixas em amarelo e verde, sem ninguém saber quem o pusera. Belmiro Véio foi quem primeiro viu aquilo, quando a madrugada guardava a rua, ainda antes do cantar dos galos; ficou ali, em frente, silente, olhando tudo devagar, até pouco antes de os primeiros acordarem, então foi pra casa, para o seu ofício de todos os dias. Foi no mesmo tempo em que Dica acordou sobressaltada, sentou-se na beirada da cama, tentando ouvir novamente o que ouvira dormindo, e que a acordou: “Vá ver na porta da Prefeitura!”; levantou-se encabulada com aquilo. O falatório acordou o dia: “Apareceu uma carta na porta da Prefeitura: diz-se que é da Raimunda!”, “Gente, cuma é que isso é pussive, se a muié tá morta e enterrada?” “Alguém leu?” “Não, ninguém teve corage pra pegá naquilo, não”...
Quando soube, Dica lembrou do que ouvira e a fez acordar, foi ver: recolheu o envelope e voltou pra casa; à mesa o abriu com cuidado: espantou-se ao reconhecer a letra da carta: era sim, a letra da filha morta. Leu tudo. Chorou com a alma de mãe em desespero, desamparada de tudo, sem ninguém. Dobrou a carta, guardou-a no envelope em quase desvario, sentindo pesar-lhe na mente a última frase: “...levo no meu ventre, o fruto do amor que é só meu!”. Nunca se soube do pai-patriarcal, quem foi o genitor do natimorto, não se soube: Raimunda não disse; como se jogasse eternamente, por esse seu segredo, um mundo de hipocrisia e perversidades sobre os ombros do que se satisfez gozosamente em suas carnes virgens, no correr de dias e noites segredados. Assim, cobriu tudo de silêncios, com sua assinatura ao fim da carta...
Belarmino Véio, com seu falar vagaroso e quase murmurado, a tudo que dizia, acrescentava o sufixo “mente”; como se, assim, desse um sentido maior, de verdade-verdadeira, aos seus dizeres. Dizia: “...era pra num ser, mas ficou sendo assim, por causa dos apressadamente dele”; perguntavam-lhe de tudo, pra vê-lo gastar palavra incomum: “Véio, que acha desse Diácono que chegou aí...?” Ele olhou pro céu, antes de responder: “Do que vi, e foi pouco, é gente estudadamente formada nos Evangelhos...” Belarmino olhava tudo devagar, e guardava-se em segundos de silêncio antes de responder qualquer coisa, como se buscasse a resposta já pronta e guardada dentro de si; dizia que no mundo de Deus, nada gostava de ser visto e tratado com as agonias da pressa: “Deus de tudo fez, e podia, mas num fez, tudo duma vez...” Faziam-lhe perguntas bestas, que mantinham o perguntador nas suas ignorâncias, e não acrescentavam nada a Belarmino Véio; que seguia sabendo o que sabia...
No seu modo muito-sozinho de ser e viver, responder-lhes era a sociabilidade que lhe restara naquele tempo e lugar. Belarmino os olhava com certo riso de compaixão, que não deixava aflorar na boca, nem no olhar: a ignorância lhe entristecia e o fazia mais sozinho; sabia que o tinham como bobo, e fazendo-lhe aquelas perguntas bobas, manifestavam-se aos demais-iguais uma suposta superioridade. Perguntavam sem botar atenção nas respostas, que lhes caíam como um divertimento, sem significado além da forma dele as dizer-lhes: eram perguntas sem sentido para o conhecimento – coisa de gente besta, tola, que se acha sabido nas suas bestitudes...
Belarmino Véio vivia de si, num mundo de gente que não sabia de si mesma e, assim, seguia sendo a de sempre, à moda dos vegetais. Ninguém nunca o vira zangado, nem ninguém nunca ouviu dele um praguejar, um reclamo – era um desses que todo mundo sabe da existência, mas, falta mesmo, por necessidade dele, ninguém tem. Vivia o ofício de fazer candeias; fazia-as de latão, flandres e garrafas e vidros vazios de remédio: refazia a beleza do mundo dos sobejos do consumo; ao que se dava todo, com gosto de se demorar nas minudencias exigidas. Perdia-se num tempo sem medidas de hora, que, fugido dos relógios, punha-se entre seus dedos, entranhando-se nas dobras das suas paciências de artesão: o tempo, brincando em licenciosidade física com Nosso Senhor, desdobrava-se em quietudes, plenificando a salinha-oficina, a olhar o Véio em respeitoso silêncio – como se a ensinar Belarmino que os mistérios da Vida estão nos silêncios...
Belarmino Véio vendia o seu trabalho em troca de pouca coisa, porque, de mais, não precisava, para pagar o seu viver de pouco custo; mas vendia com a esperança, que sabia desossada, de que vissem outro alumiar nas lamparinas, além dos fachos. Morreu dormindo – num silêncio que ninguém viu, porque Deus gosta de levar assim, os de que mais gosta, pra lhes dar susto bom: quando acordam, enxergam-se em distâncias siderais, e veem que estão mortos na Terra; então, começam aprendizado novo. Belarmino Véio devia já está nesse ofício de aprender coisas novas, quando sentiram sua falta: arrombaram a frágil porta da casa, e lá estava o corpo mirrado, como se dormindo, aconchegado em si, dentro da rede.
Agasalharam o corpo no ataúde, envolto na mesma rede: sepultaram-no naquela tarde. Na casa só, acharam moedas antigas e dinheiro novo numa latinha de alumínio, guardada numa caixa de madeira, onde havia roupa dobrada, um paletó de casimira com pouco uso e cartas amarradas, formando um canudo. Nada mais acharam; senão, o desassossego de muitas indagações...
(*) ELISMAR BEZERRA ARRUDA é professor.
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