Cara tradwife que teima em aparecer na minha timelin
Não sei o que o algoritmo pretende ao insistir tanto no nosso improvável encontro digital, mas, depois de muito tentar ignorar sua presença nas redes, resolvi ceder às forças ocultas das plataformas sociais e ouvir o que você tem a dizer.
Queria começar esta carta afirmando que não desejo travar uma guerra contra seu estilo de vida, muito menos invalidar sua escolha de abrir mão de uma carreira para se dedicar ao lar e à família. Venho em missão de paz e diálogo.
Confesso que seus vídeos me fascinam e desconcertam em igual medida, me tirando da minha zona feminista de desconforto. Talvez seja a sua voz suave que contrasta tão violentamente com a velocidade 1.5 com a qual eu ouço as mensagens de voz do WhatsApp. Talvez seja a sua pele impecável e o penteado meticuloso que afrontam minhas olheiras e a marca da espinha que espremi no queixo. Ou talvez seja a naturalidade com que você prepara refeições vestindo um traje de gala e segurando um bebê de oito meses no colo, enquanto eu requento a lasanha do fim de semana a bordo da roupa amassada que usei ontem.
Seus vídeos me fascinam e desconcertam em igual medida, me tirando da minha zona feminista de desconforto
Mas depois de semanas estudando seu conteúdo e de algumas de suas colegas, ficou claro que o que me intriga nele não é a sua escolha por abrir mão de uma carreira em prol do cuidado da casa e da família. Acredito que o trabalho doméstico e do cuidado são absolutamente essenciais. Tão essenciais que deveriam ser valorizados e melhor remunerados, oferecendo garantias às mulheres que optam ou são obrigadas por suas circunstâncias a exercê-los.
Mas vamos combinar? A vida doméstica não é fácil. Pelo contrário, é cansativa e, na maior parte do tempo, não se encaixa no que consideramos "instagramável". E aí, quando vejo você fazendo a manteiga que vai no bolo que o seu marido acordou com vontade de comer, ou fabricando serenamente os giz de cera para que os seus filhos possam desenhar, me pergunto: cadê aquela faxina caprichada do banheiro? E aquela dica de como lavar as cuecas do marido? Ou um papo sincero com voz de ASMR enquanto você dá conta de uma pia lotada de prato sujo? Como uma mulher que prega o retorno a um tempo em que nosso papel se restringia aos afazeres domésticos, imagino que se ocupe também desses serviços menos fotogênicos.
Essa aura de leveza e plenitude com a qual você embala a vida doméstica me parece, portanto, propaganda enganosa. E aí fico genuinamente preocupada com as meninas mais novas, entrando no TikTok e sendo levadas a acreditar que ser submissa é bater bolo trajando paetês.
Aliás, se queremos permitir que essas meninas façam escolhas mais informadas, não podemos deixar de falar dos perigos de abrir mão da independência financeira, especialmente num país em que uma em cada três mulheres já sofreu violência doméstica e mais de 11 milhões de mulheres são mães solo. Sei que o seu marido jamais encostaria o dedo em você, ou te trairia e te abandonaria com filhos pequenos para criar, mas nem todo homem é virtuoso como ele, não é mesmo?
Gostaria, portanto, de lhe fazer uma sugestão em nome da influência responsável que eu sei que você deseja praticar. Que tal, daqui para frente, incluir um aviso de publi do conservadorismo nos seus posts? Assim acho que as coisas ficam mais claras.
Um abraço desta mulher fã do progressismo e adepta de comprar a manteiga pronta no mercado.
(*) JOANNA MOURA é publicitária, escritora e produtora de conteúdo. Autora de "E Se Eu Parasse de Comprar? O Ano Que Fiquei Fora da Moda". Escreve sobre moda, consumo consciente e maternidade.
(**) Publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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