“Fiquei transtornado. Achei que, apesar de vivo, minha vida tinha acabado ali”. Assim o ex-auxiliar de frigorífico José Ribamar dos Santos Lopes resume o que sentiu após perder a perna em um acidente de trabalho aos 19 anos de idade no município de Sorriso ( a 396 km de Cuiabá) em 2003. Após o ocorrido, José se tornou técnico de segurança do trabalho.
“Pensava que era o fim de tudo, que jamais iria voltar a andar, a trabalhar, a jogar futebol, a arrumar uma namorada...”, diz ao recordar a tragédia e as reviravoltas que o levaram quase 20 anos depois a ser um respeitado técnico de segurança do trabalho. Hoje ele orienta os trabalhadores da Marombi Alimentos, mesma empresa onde viveu os momentos mais traumáticos de sua vida, a como prevenir acidentes.
Tudo aconteceu muito rápido naquele dia em 2003. Na fábrica de ração para as aves que funcionava ao lado do frigorífico havia uma fenda no chão onde ficava a engrenagem para levar o milho para moer. As grades estavam danificadas por causa da manobra dos caminhões sobre elas. Foi nesse local que o jovem trabalhador, recém-chegado do Maranhão, ficou com o pé preso e foi tracionado pelo mecanismo. Ele não morreu na hora porque outro colega o puxou.
Como José Ribamar, mais de 1.100 trabalhadores brasileiros sofrem acidentes de trabalho todos os dias, conforme dados do Ministério do Trabalho e Previdência. Sobreviver a um acidente já é um feito. Apenas em 2021, foram 2.487 óbitos associados ao trabalho, segundo o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, desenvolvido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Ministério Público do Trabalho (MPT).
Somente os registros oficiais somam mais de 6,2 milhões de acidentes nos últimos 10 anos no Brasil (2012 e 2021), sem contar a subnotificação. Quinze por cento desses casos envolvem operação de máquinas e equipamentos, como aconteceu com José Ribamar. Esse tipo de acidente resulta em 15 vezes mais amputações e outras lesões gravíssimas do que as demais causas. Geram também três vezes mais acidentes fatais que a média geral, revelam os dados do Observatório.
Solidariedade
“Transtornado” é uma palavra que se repete várias vezes na fala do técnico em segurança quando ele se lembra do que se sucedeu ao momento do acidente. Tinha parado de estudar na 7ª série e fazia seis meses que estava em Mato Grosso em busca de emprego para ajudar os pais e irmãos que tinha deixado no Nordeste.
Enfrentou sozinho os primeiros 20 dias de internação no Hospital Regional de Sorriso. Nesse período, foi vítima de uma infecção hospitalar e teve de fazer a amputação. A mãe do trabalhador só conseguiu chegar do Maranhão depois dessa complicação, pois tinha passado por uma cesariana e estava com um bebê recém-nascido.
Nessa fase, a solidariedade de duas pessoas fez toda diferença: o colega Dielso, com quem dividia o quarto alugado, deixou o emprego para cuidar do amigo que estava entre a vida e a morte no hospital. “Virou um irmão, nunca vou me esquecer o que fez por mim”, enfatiza o trabalhador. Outra, foi uma senhora que morava ao lado da casa onde a mãe de José Ribamar ficou hospedada logo que chegou. Era com a vizinha, recém-conhecida, que dona Marialva deixava o bebê, com pouco mais de um mês de vida, para passar o dia no hospital ao lado do filho acidentado.
Emenda 45
O caso bateu às portas do Judiciário e está entre os primeiros julgados pela Justiça do Trabalho após uma significativa mudança na legislação, no fim de 2005. O processo com pedidos de indenizações pelos danos causados pelo acidente foi proposto na 2ª Vara Cível de Sorriso, em 2004, quando a competência para julgar acidentes do trabalho era da Justiça Comum. Em dezembro do ano seguinte entrou em vigor a Emenda Constitucional 45, que ampliou a competência da Justiça do Trabalho para julgar ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho, e os autos foram enviados para a Vara do Trabalho de Sorriso.
Atuante nas áreas civil e criminal, o advogado do trabalhador, Silas do Nascimento Filho, recorda a condição difícil que o cliente enfrentava. Inicialmente a empresa ofereceu pagar uma prótese mais simples, mas por fim conseguiu-se o aparelho mais moderno na época. “Foi muito traumático. Houve uma grande discussão para a solução do processo da prótese, entretanto chegou-se a um acordo”.
Seis anos após o acidente José Ribamar voltou a andar sem muletas, prazo que incluiu a realização de dois anos de fisioterapia para prepará-lo para a implantação.
Selando essa fase, o caso teve um desfecho incomum: a Marombi (que na época se chamava Anhambi Alimentos) ofereceu uma nova vaga de emprego ao trabalhador, que se tornou porteiro do frigorífico. A atitude surpreendeu até mesmo o advogado. “É de se enaltecer a postura da empresa que, mesmo tendo sido demandada, condenada à indenização pleiteada, ainda assim mantém o José Ribamar como funcionário até os dias atuais.”, destacou.
Indenizações
Graças à pensão garantida com o processo trabalhista, José Ribamar foi pouco a pouco colocando a vida em dia: tirou carteira de motorista – “foi a primeira coisa que fiz, para ajudar na mobilidade” – pode arcar com o aluguel de um imóvel maior e trouxe os pais para morar em Mato Grosso. Voltou a estudar. Recontratado na empresa, recebeu uma bolsa de estudo para o curso de técnico de segurança do trabalho.
Isso foi há 19 anos, e desde então o trabalhador exerce a nova função no frigorífico. “Dou cursos e treinamento com orientações para que as pessoas não passem pelo que eu passei”, conta.
Dentre as conquistas que ele mais se orgulha estão a de ter comprado um imóvel para os pais e de estar terminando de construir uma casa para viver com a atual companheira. Mas a voz embarga quando fala das duas filhas, Lavínia e Diair, felicidade que jamais imaginava conseguir concretizar naquele ano de 2003.
Memória às vítimas
28 de abril é o Dia Mundial de Segurança e Saúde no Trabalho, data para lembrar das vítimas de acidentes. Além das quase 23 mil mortes e 6 milhões de acidentes registrados no Brasil na última década, o levantamento do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho mostra, também, que foi perdido cerca de 469 milhões de dias de trabalho. O dado é calculado com a soma em que os afastados não puderam trabalhar e revela o tamanho dos prejuízos de produtividade para a economia.
Nesses 10 anos, o INSS concedeu 2,5 milhões de benefícios previdenciários acidentários, incluindo auxílios-doença, aposentadorias por invalidez, pensões por morte e auxílios-acidente. No mesmo período, o gasto previdenciário ultrapassou os R$ 120 bilhões somente com despesas acidentárias.
Nesta data, a história de José Ribamar ainda é um ponto fora da curva na volumosa estatística de acidentes de trabalho no Brasil. Dentre os elementos que possibilitaram a reconstrução dos projetos de vida do jovem trabalhador após o acidente incluem, além de sua força de vontade, a pensão garantida na Justiça do Trabalho para que ele pudesse custear sua existência e a reparação por meio de uma prótese adequada, que lhe devolveu a mobilidade. Também chama a atenção a postura da empresa que o recontratou e desde então conta com o empenho do agora técnico em segurança.
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