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Artigos Segunda-feira, 09 de Setembro de 2024, 08:05 - A | A

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Segunda-feira, 09 de Setembro de 2024, 08h:05 - A | A

ELISMAR BEZERRA

Nossa travessia desde a ilha do bananal

ELISMAR BEZERRA ARRUDA

A Terra parece-nos muito grande, tamanha a nossa pequenez. O olhar que tudo vê, que tem muitas dificuldades para enxergar a grandeza do essencial, faz-se exímio pra ver a fragilidade do outro, que se lhe afigura como ameaça. Daí o Universo ter ciúmes de seus encantos, de vê-lo deflorado por necessidades e interesses mesquinhos; e revestir-se, então, de imensidões - e, quase em deboche, cega-nos a vista, com o horizonte belíssimo, de nuvens, atmosfera e cores e sonhos quiméricos. À noite se ri, riso solto, pelo brilho de cada estrela, que dispôs aos trilhões como bordado de luz no seu lençol escuro e sem fim; esmerando nos espaços dos alinhavos, com distâncias siderais e frias – fazendo o gosto de Deus.

O horizonte é uma terna loucura, que a gente vê e desvê sem sabê-lo ao certo – a que chamamos de utopia...

Foi assim que ao longo dos anos, contados aos milhares, a humanidade aconchegada em suas dores e alguma alegria, caminhou guiada pelo sol, pelas estrelas e pela Lua – com quem se encantou; quando a Lua era o encantamento celestial deste recantinho do Universo. Quando, diante da necessidade mais elementar de bichos e gente, começou com o ofício de despertar-lhes a necessidade e a satisfação de um se sentir necessitado do outro e da outra; deitando no mundo, assim, as raízes materiais do Amor. Foi quando a gente nem podia inventar o egoísmo, pois todos viviam se aquecendo no calor de cada um; de jeito que precisavam compartilhar suas lindezas de ser o que eram, no olhar, no cuidado, no riso sem ironia do outro. Naquele então, ninguém da humanidade havia inventado o indivíduo, nem sabiam cultivar perversidades...

É de se dizer, que, naquele tempo, não existia o Diabo; porque ninguém tinha a precisão dele, nem das igrejas. Deus era tudo o que já era, e sabia da desnecessidade de se apresentar mais!

Agora, só aos pobres as lonjuras da Terra são imensas. Os caminhos do outro destino que buscam, passam no meio das ligeirezas dos ricos e poderosos, e precisam ser rompidos à pés-descalços, na terra-chã. Caminhadas inimaginadas, quando do primeiro passo: Coluna Prestes, Grande Marcha da China, Marcha Sobre Washington, as belíssimas Colunas do MST; e tantas e inúmeras outras, duras e desesperadas, de Retirantes sem nome...

Dos tempos e lugares que desesperam o corpo e a mente, especialmente pela fome, é que se retira para os ermos que, depois, ‘amansada a terra”, são apropriados pelos homens e mulheres de negócios; aí, resta aos Retirantes, os arrabaldes desse viver e as lembranças dos jeitos inventados para o caminhar. Como os que, vinte mil anos antes, estiveram em Jangada e deixaram nas pedras dali suas mensagens, para que não fossem esquecidos: por isso, os da luta atual, fizeram daqueles vestígios, o sítio arqueológico Santa Elina. Também outros, que viveram nas terras e cavernas de Chapada, conforme suas inscrições nestes imponentes arenitos chapadenses – que a intransigência interesseira quer destruir.

Mas, é necessário destacar, nenhum caminhante conhecido é tão antigo, quanto os que deixaram suas marcas nas rochas da Serra da Capivara, datadas de 50 mil anos, que encantaram a belíssima Niède Guidon...

Nem Tanoca, já viúva, nem Maria, ainda menina, nem os demais caminheiros do grupo vindo de terras nordestinas: cearenses e maranhenses, rumando para o nordeste mato-grossense da primeira metade do século passado, deixaram inscrições nos caminhos de poeira e esperanças que caminharam. De seus, naqueles desertos, só os meninos e as meninas, porque todo o resto, escasso, era coisa de aliviar um pouco os sofrimentos; dor que menino e menina d’agora, que tem livro, uniforme, caderno e lápis, não sabe, nem imagina – e professor não ensina...

Elas saíram do Norte do Goiás indiviso, do outro lado da Ilha do Bananal, para atravessá-la, de lado a lado, até o Mato Verde (como foi chamada a Luciara no início), buscando outro futuro. Era o período da estiagem, porque no tempo das águas ninguém atravessa a Ilha do Bananal a pé, junho, julho, quando cessam as chuvas, a Ilha seca, esturrica. Calorenta, faminta, sem frutos que carecem de água para ser, a Ilha vira um deserto de árvores e arbustos e capim sem o viço prazeroso do verde. Caminhavam no silêncio de fadigas, quebrado pelo resmungo de um, o choramingar de uma criança, e olhar no poente pleno de esperanças magras – porque, por pior, o destino perseguido não pode ser mais árido, que as razões materiais e espirituais, do desterro...

Numa égua, uma senhora de idade avançada se equilibrava, sob a inveja das crianças cansadas de caminhar, a dizerem em surdina: “essa véia podia morrer, pra gente ir na égua”. Numa dessas, Tanoca ouviu e passou um lapicho, uma reprimenda, corretiva: “isso é pecado, minhas filhas; num vê que ela num dá conta de caminhar?”. Compaixão de pobre ensinada pra orientar a vida toda, pois, criança ainda não sabe que é a necessidade qualificada pelo interesse egoístico, que faz os arrivistas, os ladrões, os assassinos. Teve um dos meninos de Tanoca que, ali, pelo meio da travessia, sofreu um acidente com faca na barriga; ficou morre-não-morre, escapou, e foi o último dos filhos, nosso Tio, a morrer, e de velhice...

A Ilha do Bananal é “a maior Ilha fluvial do mundo”, dizia o livro de Geografia do Ginásio: O Brasil e suas Regiões, que li inteirinho, quando estava na 6ª ou 7ª série; do lado leste, o Tocantins, a oeste o Araguaia. Mas, naquele então, nossa Vó, nossa Mãe e todos os outros, não a conheciam; não sabiam que, depois da estação das águas, no tempo da estiagem, sem uma gota de água caída dos céus, com seus varjões ressequidos, seria um tormento atravessá-la. A beleza dos ipês, das canjaranas e aricás floridos, contrastava com o cinza da seca; com a agonia de se saber da pouca comida agasalhada nas cangalhas dos animais: farinha de mandioca, sal, carne seca – que acabou antes da metade do caminho...

Quem come não sabe, que a fome, depois de certo tempo, vai se acumulando até virar um sentimento perene, que transborda o corpo e mata a alma...

Num dia, contou-nos nossa Mãe, “tinha acabado quase tudo o que trouxemos de comida; restava farinha, que precisava ser muito bem repartida, pra enganar a fome e aguentar chegar. Aí paramos num lugar de água pouca, barrenta, quase só uma lama, onde conseguiram pegar um cará, pequeno, e nada mais; então, botaram esse carazinho pra cozinhar num caldeirão grande, cheio de água e sal: o peixe subia e descia, fervendo, até quase desmanchar. Aí, a Mamãe botou os pratos de esmalte encima de um girau e, em cada um, uma mão-cheia da farinha; depois, sobre a farinha, aquele caldo ralo, só com o cheiro do peixe e o gosto de sal, pra gente comer...”

Chegaram todos vivos no outro lado da Ilha, no Araguaia, defronte do povoado que se formava agarrado na sua margem esquerda – quando o sol marcava o meio de uma tarde de agosto. Do barranco, avistava-se, do outro lado, as poucas casas, um acanhado porto e gente olhando sem reconhecer os chegantes; porque era um tempo de seca e migração nordestinas, e aquele era um dos muitos destinos daquela gente. Ali, no barranco, no último limite a oeste da Ilha, havia uma “bandeira” (um pedaço de tecido branco atado à uma vara), que era para ser levantada em sinal para alguém do Mato Verde ir buscar quem chegava. Assim, agitada a “bandeira”, a canoa zingrou em idas e vindas, até atravessar todos: umas vinte pessoas, entre crianças, adultos e velhos, além dos animais.

Assim, tangidos por necessidades e desamparos, chegaram. Alívio de se saber vivos. Abraços. Recados e lembranças dos que ficaram no Goiás, Maranhão, Ceará. Fizeram comida boa e farta. Comeram mais que a fome, com a alegria de reencontro. Ataram redes para o descanso e o pernoite. Dormiram sono solto, com o frio ribeirinho de julho, sem muriçocas, tangidas pelo vento geral.

Tanoca – conheci e amei, quando ganhei entendimento das coisas. Havia passado décadas, desde a sua chegada em Luciara. Os poucos cabelos pretos, longos e lisos, faziam parecer mais brancos, todos os demais. Morava numa casa de adobe, com caibros roliços e ripas de taboca rachada ao meio, coberta com palha de piaçava e chão batido; pra onde nossa Mãe nos levava, com o medo que herdei, quando armava chuva braba, de vento e raios e trovões. Tanoca rezava na porta, enfrentando a tempestade com palavras ligeiras, faladas baixinho; ela tinha intimidades com os fenômenos e coisas celestiais: a tempestade reconhecia e silenciava obediente. Fumava um cachimbo de barro cru, feito por ela mesma, com canudo longo, de tipi – era bom pra espantar muriçoca...

Tanoca gostava de pescar, e me levava junto. Nadava eximiamente, de jeito que me colocava nas costas, e nadava como se com peso nenhum. Nenhuma criança de hoje, de asfalto e redes sociais, sabe a magia de poder flutuar nas águas do Araguaia assim, daquele jeito, amoroso, de Vó...

(*)  Dr. ELISMAR BEZERRA ARRUDA é professor.

 

Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião do site de notícias www.hnt.com.br

 

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